sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Prece

Ó, Morte
               Nossa
                           de
                                 cada
                                          dia.
    
             
                              O desejo!

                      Não,

nos permita:


Viver sem ti

Ó, morte nossa de cada dia,
Traga o alento, para o caos,
Ocaso, das manhãs quentes,
Inicia: turva, nuvem à chuva.

Ó morte nossa de cada dia
Que o pão que tu amassas
Não se afaste de nós, que,
Vivos possamos ouvir à lira
E sentir em nós, o mundo e nada.

Onde está então, o fim
Que amedronta? Se, o
apego é o que te faz soltar.
que vivas à renascer.
Que não nos falte a morte
Pois sem há viver!


Ó obliqua mãe dos medos,
Fazes, o que melhor sabes,
Findar! Retoma meu ser, e,
Remova, o espirito de não
Querer, amar às quedas.

Ó chão, fundo, a sete palmos
Bonito, fecha cena dos salmos
Veros, versos decassílabos? é.
Não sei conta-los. asnos poetas.


Ó frio, de todos os ventos
Ó deusa dos peitos abertos
Ó mãe dos intricados, deso-
rienta! Ó morte nossa de to-
dos os dias, dias que tú não
vens, ficamos vivos demais.

Ó morte nossa de todos os dias
Não nos falte um dia se quer
Faz-te presente em nossa vida
Pra que possamos, amar algo, alguma coisa.
  

Ó morte nossa de todos os dias
Que não se apague o fogo
Da ponta e das partes. (Ó tia
Das cantinas do inferno,
Não te esqueças do bem que
Te fazemos, damos nossos
corpos, na chacina de nossos becos.)

Ó ciclo vivo, afortuna-me
É que o ontem já morreu.
 Ó Objeto de delírio
Que me deem lírios
No dia em que fores tudo, em outro eu.


- P.R.S FREIRE







(Panagens- Ronaldo Azeredo, 1975)












terça-feira, 24 de novembro de 2015

...





tempo que
foi, indo
lento que, foi,
foi, indo.

pressupõe
análise,
critica que, voe,
que deslize.

sobre os temas
esquemas
pensamentos, e,
tormentos.

imagine-os
simbiose,
velhos,
esclerose.

leve, só,
só, leve,
amor,
agregue.

puro, lento
calmo, intenso,
pra cima
feito a Talita.


ou não,
que o chão
que pisas
fisga, o fica,
o homem,
o menino.

seja, ou,
de-veja,
o desejo carnal
o calor e o fogo, carnaval

não é pra ninguém
só é poema,
sem destino,
sem tema.   



P.R.S FREIRE


Foto: Talita Moraes, letra, tudo.

















quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Escolha quem te ama para amar

Escolha quem te ama para amar
" Não sou eu quem sofro por que revelo o que sinto Quem sofre é voce que se esconde por trás do medo de dizer o que sente Essa sua tentiva de evitar uma catástrofe hipotética de desgosto Torna-se real a cada instante que negas E vives o que julgas correto Nao te entregas ao que realmente é vivo  Aquilo que voce na verdade queria fazer Mas acorrentado pelos fantasmas assombrosos do passado,se nega Pelas palavras dos outros no presente E pela possibilidade da visita do sofrimento futuro Deixa de viver e sentir o gosto da maçã mais forte As cores dos automoveis mais vivas O sol mais intenso Todos os cabelos lindos em penteados Se priva de chorar pela dor da possibilidade de perder o outro Nao sabe o que é saudade Nem tao pouco onde o setimento é capaz de te levar Se aprisiona nesta liberdade da tua falsa autosuficiencia , enquanto tempo passa as horas voam,  e nao vê o amor e o sentimento atravessar a rua a sua frente intensamente Por que esta sempre se perguntando o que o outro pensará Nao diz o que sente pra se resguardar Na verdade se enclausrar no bau  do nao sentir, do nao viver Da assolacao escabrosa que cria expectativa de pré-seguro do sofrimento Garantindo nao sofrer E as duras penas é a privacao de viver intensamente o que deve ser vivido hoje Ame o quanto sente que ama Fale o quanto sente que sinta Faca tudo o que estiver ao alcance  Sinta o frio na barriga com o medo de perder O que digo é, viva! Seja humano, esquecam os robôs racionais que te fizeram Aproveite,diem Carpie,sempre Abuse de si e do outro Viva no seu limite de amor Dê pra quem ama Coma a quem ama Deite-se com que te ama Sorria pra quem te faz sorrir Abrace a quem vive te dizendo que teu abraco sacia Esteja ao lado deste alguem que nunca sai do teu lado Retribua esse calor Cuide do que hoje e seu Por que o que é seu cuidará de voce Feche os olhos e viva o que voce precisa viver Se entregue para o amor que te faz feliz A boca que te beija e a msma que te bendiz A mao que te levanta sera a que te medica E os olhos daquele que te ama e o mesmo que chora quando longe de voce Aceite este coracao  Presentei-se permitindo retribuir Escolha quem te ama pra amar não um amor qualquer."

- Jefferson Maciel




domingo, 15 de novembro de 2015

Revolução via poesia: trincheira das palavras

Revolução via poesia: trincheira das palavras

Anil,                                         Saara             
Eufrates,                                     Bacanga  
Doce,                                         Lama!
                        Casa?

Poeta disse:
                        Onde o vento, passa!
     
                                                                      Grito,
Indecência,                                                          Ipiranga,
Paciência.
                        Lavadeira!

Moça,                                                Canga,
Cangalha:                                            Ganja,
Veste,                                                         Brisa,
Suja                                               Rio (e) Mar
Sunga                                                          
Corpo: vale (ser) livre, doce liberdade.

                        Lama!

Todo                                     Estranheza       
Lado oposto                                  (da)   carga
Fica (a) par                                         útero  
(Da) união                                             hetero
Quando não (se) põe (o) O                            padrão
Se estranha!                                      Normativo!


Beijo                                               espinho,
Barba,                                              garota!
                     (o)
Amor                 (é)                        doce
Azedo               (ué)                      querer 
                         



Te incomoda
Acomodando a movimentação
(Das) partes,
Trégua, (do) (o)
(e) uó.




Não só na rua                            Brisa: decide-te         Pela rua, nas valas                         o nome
Ler, ouvir (o) som                             do                                                                homem
Agudo, dos sons                                do                                                               poeta    
Sondando, lixos                         quem é?      
Rios, picos íngremes.                        Na luta, de lata,                                                   lama e rima?


Lúdico sono                                    aposto
Poema maior, diz!                              À corte,(do) Sul,
Que pensa!                                     sensíveis ventos (no)
Sonho: guerra e vida!                     Poesia, São,(o)(um)norte.



Unir-vos                                           todos (os)
Anelares, brisas                                   ventos (de)
Norte                          (à)             Sul.



Conclamem:
Vida aos homens
(e)
Reflexão soa aos poetas.

(Os) rios do ser já
Mortos foram, histórias só
Ouvir contar,
Morreram antes (de) toda poesia vir!

Vamos, lutem              quer matar-te
Bendita poesia              entra nesta
Que (o) poema             guerra,

Maldita aos homens,
                      (e) Rios
Que
           (o) Fim, já começou!


Paulo Roberto Silva Freire





domingo, 25 de outubro de 2015

O Canalha




O canalha


Tonny Araújo


Pejorativo: Pessoa desprezível, infame ou miserável: o canalha deste antro; (Definição do Dicionário Léxico para a palavra “canalha”);


Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio (E. Kant).


Os olhos dele gritavam de raiva e medo. O rancor lhe parecia tão abençoado quanto a necessidade de autopreservação. Será que o mundo precisava de um novo salvador? A mente dele parecia fritar diante dessa indagação.

Muito antes dos acontecimentos ultrajantes

“Não dá pra entender. O ser humano é mesmo uma merda. Tem uma galera que se compadece de uns, mas está pouco se fodendo pra outros. HIPÓCRITAS!”. 20 curtidas em duas horas. Dia 12 de março de 2014.

“Só porque assistiu Laranja Mecânica 8 vezes, Clube da Luta 5 vezes, Uma Odisseia no Espaço 15 vezes, Planeta dos Macacos mil vezes e filmes do Lars Von Trier, fica pagando de cult. Me poupe!”. 41 curtidas em trinta minutos e um compartilhamento. 3 de abril de 2014.

“Do que adianta ficar fazendo orações? Duvido se iriam ajudar um mendigo qualquer se tivessem oportunidade. Faz o seguinte, me exclua! Não quero amizade com gente escrota igual você!”. 10 curtidas em 5 minutos. Em uma hora já haviam 53 curtidas e três compartilhamentos. 20 de fevereiro de 2014, exatamente às 15:00hs. Os comentários eram apaixonados e aparentemente vindos de pessoas muito preocupadas com o destino da existência e da essência humana. “É isso aí, cara! Já pensou se todos ajudassem com o pouco que tem, em vez de se isolar?”, “Boa! Esses religiosos não fazem nada pelo próximo, são uns burros” (“não fazem nada...”. Nem preciso falar de como a gramática tem se comportado na internet, não é?), “Chupem seus trouxas!! VOU COMPARTILHAR AGORA!”, “Sempre falo isso aqui em casa. Você tem toda razão, seu lindo s2”, “Na mosca, cara! :/”.

É claro que haviam aqueles que discordavam dos posts excêntricos de Edu, mas cá para nós, não existe democracia nas redes sociais, ele sempre deletava os argumentos contrários aos dele. Assim, acreditava que evitar atritos com gente de poucos neurônios o pouparia de uma dor de cabeça ou, vai saber, um encontro nada amigável com alguém na rua.

- Que bosta esqueci a senha de novo! Ele moveu o cursor do mouse até a parte superior do navegador e clicou em settings. A senha estava lá, memorizada. Ah! Quem precisaria de memória, papel e caneta no maravilhoso século virtual?

Edu... Não, Edu Corrêa, era seu nome de guerra nas 6 redes sociais em que participava. Para alguns, ele era conhecido pelos compartilhamentos peculiares e comentários inconvenientes sobre a morte dos outros. Para estas mesmas pessoas, Dudu era o típico do contra, chato e “polemizador” (expressão que se tornara recorrente nas redes). Alguém precisava cumprir esse papel, não é Edu? Bem, talvez não fosse culpa do nosso amigo fanático por bandas alternativas e obsessão por filmes de enredos não-lineares. Em meio a um ambiente familiar onde tudo,absolutamente tudo era tratado com base em argumentos científicos, ele poderia ser considerado como uma bela espécime representativa do novo “jeitinho brasileiro” do século XXI: niilismo barato de botequim e esforço desesperado de relativização das posições argumentativas alheias.

Edu permanecia 24hs on line, entre um charuto e outro, ele permancia atento a cada “passo” no universo criptografado. Se alguém ousasse rebater suas postagens com indiretas, seria um Deus nos acuda. Alfinetadas por meio de intermináveis comentários ambíguos. Alguém, mesmo que tivesse nada que ver com o assunto, sempre era atingido. São os malefícios dos comentários genéricos.

Corria uma notícia na internet e em outros meios de comunicação de que a depressão era o mal do século, uma peste que matava tanto quanto os acidentes de trânsito e chegava devagar, flertando até com as crianças mais sorridentes de classe média alta. Não era bem verdade. Normalmente a tristeza profunda tende a ser repelida pela sociedade, então a depressão era, minimamente, combatida. O mal do século era outro. Algo que parecia moralmente saudável. Um espírito de heroísmo disfarçado de despretensão e pessimismo, ou vice-versa, não importa. O verdadeiro mal não era aquela força abstrata que impulsionava a humanidade para que fizesse suas próprias escolhas. Não. Dessa vez, algo havia se apropriado de algo pior do que a crueldade. Um cordeiro em pele de lobo.

Edu passou a carteira de créditos no leitor, (Pi! Pi! A máquina soou), “Hum. Vinte e um reais de crédito. Dá para aguentar essa semana. Eu acho. Se aumentar a passagem de novo, estarei fodido”. A cobradora tinha uma expressão horrível, que chamariam de “blasé” se fosse uma atriz. Naquele caso, era só uma “cara de bunda”. Havia uma marca escura estranha em sua farda azul na altura dos seios (devia ser café, ou algo do tipo) e uma engraçada barriga que abocanhava seu cinto. Edu agradeceu, mas não foi recíproco. Ele pensou: “É assim? Vai ver o que eu vou falar sobre a falta de educação dos cobradores dos coletivos, vadia!”. Ele sentou em um daqueles acentos altos, uma predileção estranha desde que era moleque. Devia ter adquirido esse hábito ao repetir o comportamento de sua mãe. Eles dois faziam alguns programas juntos nos finais de semana. Combinavam de ir no coletivo, pois achavam mais emocionante do que ir de carro. É claro que isso já fazia quase 20 anos e na época não havia superlotação, assaltos e assassinatos dentro dos coletivos. Ah! E o que era melhor, havia música tocando sempre nos ônibus.

O incômodo causado naquele monólogo no Muro de Berlim de ferro retorcido branco que era a famosa “catraca” foi substituído pelo incômodo de uma irritação nas vias nasais. A mão dele tateava desesperadamente por algo dentro de suachanson preta, a mochila dos descolados. Pastas de dentes, embalagem de biscoito, uma caneta, outra caneta, papel amassado. “Onde diabos... Ah!”. Finalmente achou seu frasco de Sinuntex, com “nova fórmula e agora em spray, para aliviar de vez sua sinusite!”. Era até uma propaganda engraçada, “aliviar de vez!”. Pelos próximos, 30, 40 anos, ou variava segundo a taxa de mortalidade?

Ele borrifou cuidadosamente o remédio nas duas narinas e seus olhos piscaram de maneira ininterrupta. Um vendedor eloquente tentava convencer os passageiros a comprar balas boas para a garganta e algumas canetas que davam choque. “Puxa, que bom! Eu poderia escrever e matar um velho do coração com isso. Grande ideia! Gostou dessa Benjamin Franklin? É claro que sim”.

- Vamos lá, pessoal! Quem puder comprar e ajudar o meu trabalho, saiba que Deus se orgulharia muito de você. Quanto aqueles que não puderem...

“Vão todos queimar nas profundezas do Seol, não é meu amiguinho? Vamos, pode dizer, livre-nos do tédio e da repetição do cotidiano! DIGA FILHO DA...”

- Bem, espero que Deus os abençoe também.

“Maldito! É um farsante. Com certeza, nem pensou em dizer isso. Eu sei que não”. O estranho homem educado e humilde passava recolhendo o material que havia distribuído no começo de sua fala. “Vai querer? Não? Obrigado. E você? Não? Está bem. Ah! Você quer? Obrigado, Deus te abençoe, viu?”. Mesmo tendo afirmado que não havia estudado, era mais agradável que muitos acadêmicos metidos a besta, e também muito esperto em utilizar a jogada do “Deus abençoe aqueles que puderem ajudar”, era a retórica perfeita para qualquer marqueteiro. Dificilmente alguém atentaria para isto. Alguém exceto Edu, que sempre comparava o perfil dos vendedores da década de 1990 e os de agora. Ele achava que havia acontecido uma mudança drástica na abordagem dessas pessoas.

Nos anos 90, esses sujeitos estariam lá apenas para atuar, incorporavam um personagem trabalhador que havia se acidentado, ou uma mãe com um filho com uma doença rara. Na verdade, na maioria das vezes só queriam fumar um baseadinho ou afogar as mágoas em um gole de cachaça. Se fossem sinceros, duvido que alguém lhes daria algum centavo. Não. Aquele era o momento de eles brilharem, colocarem sangue e suor no papel. Era o espetáculo ao vivo e a cores da mendicância. Uma apresentação democrática, de graça para todos. Às vezes os papéis se repetiam, e a histórias também. Daí o público reclamava com certa razão.

- De novo isso? Semana passada esta mulher disse que o filho estava sem um olho. Agora diz que o filho está sem uma perna. Por que não diz logo que ele tem lepra?

Apenas algumas pessoas compraram os produtos e a mente de Edu funcionava a mil por hora. “Rapaz, como o povo é pão duro e insensível! Isso vai dar um belo post. Me aguardem!”. Edu olhou dentro da carteira, precisava comprar algo para não pegar feio para si mesmo, mas havia sacado pouco dinheiro no banco. A boa ação ficaria para outro dia, depois da postagem, é óbvio.

O ronco do motor do grande ônibus azul era só que se ouvia, novamente. EMPRESA DEVIR, eram as palavras que estampavam a lateral do veículo com uma fonte de extremo mau gosto. Vez ou outra dava para ouvir alguns jingles quando o ônibus passava por alguma feira. Faltavam apenas poucos quilômetros para que Edu chegasse em seu objetivo.

Ele chegaria em mais ou menos 28 minutos, se não fosse um acidente na rotatória que dava acesso ao seu bairro. Dois carros e uma moto. Aparentemente, um dos veículos, um sedan, havia desrespeitado a preferência da pick-up que entrava na rotatória, ao que a frente do motorista impaciente entrou de vez na lateral da grande importada movida a diesel. Uma moto que vinha logo atrás bateu em sua traseira, as duas pessoas voaram, caindo em cima do capô da pick-up.

Edu morava sozinho já faziam alguns meses. Sua mãe, Viviane, entendeu que ele precisava de um espaço maior para estudar, escrever algumas coisas, precisava ter uma vida mais independente dela. Ela voltou a viver com sua mãe, Dona Vitória, uma senhora à beira de seus 77 anos, as duas não tinham muitas coisas em comum, não ser o fato de ambas serem amantes dos cantores da Bossa Nova. Então, se desse alguma merda, era só botar o João Gilberto ou Menescal para “falar” que a tempestade ia embora, o céu voltava a brilhar, as nuvens se dispersavam.

Os ferimentos não eram nada agradáveis. Além das poças de sangue, não dava para contar nos dedos quantos traumatismos haviam na cena. Que tal uma narrativa por meio do olhar do nosso querido Edu? Pois bem, enquanto ouvia a seleção de músicas em seu smartphone, ele notou que os passageiros haviam ficado espantados com algo. Ele percebeu que o olhar de espanto ia lentamente assumindo um aspecto curioso, alguns esboçavam um sorriso tímido (uma água na boca?), outros comentavam sobre algo, cochichavam nos ouvidos uns dos outros, apontavam para algum lugar fora do coletivo.

Os olhos de Edu resolveram acompanhar a direção apontada pelos dedos dos sujeitos mais extasiados. Ele foi obrigado a retirar os fones de ouvido. Paul Stanley estava mandando ver.

You’re in psycho circus, and I say welcome to....

A coisa estava realmente feia. Haviam visivelmente dois mortos. O passageiro da pick-up estava debruçado sobre o porta luvas, havia sangue em sua nuca, o motorista chorava como um bebê, gritando “Meu irmão! Meu irmão!”. Seu rosto estava avermelhado, seu aspecto era confuso, desesperador, ele chorava de tristeza, esperneava e babava sem parar. Seu irmão estava morto bem do seu lado. O motorista do outro carro saiu com pressa, pondo as mãos na cabeça. A atitude parecia ser mais pelo estrago no seu carro do que pelo que havia acontecido ao outro motorista.

O dia estava lindo. Edu contemplava os olhares, o sofrimento, a dança frenética dos acontecimentos urbanos como se a morte e a alegria bailassem contentes ao som de um jazz bem quente. Be-bop-be-dun-deee-bo-bee-bo-bii!! You’ve got to make me a promisse! Podia ser mesmo Dream a little dream of me, a canção combinava com o momento. A voz doce e sedutora da Ella Fitzgerald em contraste com os graves inigualáveis do sorridente Armstrong. Que dia! Que dia! Edu tornou a colocar os fones. Deslizou o dedo sobre a tela até o player. “Bem, vejamos, preciso de um bom blues. O que vai ser, hein, meu rapaz? Tem para todos os gostos”. Enquanto isso as outras pessoas tiravam várias fotos do ocorrido, e isso incluía o motorista do coletivo e a cobradora desprovida de curvas e simpatia que abria um sorriso de orelha a orelha. “Sinceramente...”, pensou Edu, “teria sido melhor não se alegrar muito, senhora”. A ideia estava vindo. Vindo. Vindo do córtex pré-frontal do nosso anti-herói. Era o tipo de montagem on time. A ideia chegou. Era apenas uma pedra bruta, mas agora estava sendo polida, e claro que ao chegar em casa o post que ele estava pensando iria dar o que falar, abalaria as estruturas existenciais de seus 900 amigos virtuais. Ah! Se ia e ele acreditava muito nisso.

Ele tomou um bom banho. “Hoje tive uma epifania, meus amigos...”. Vestiu uma roupa confortável. “Enquanto ouvia atentamente músicas em meu aparelho celular...”. Esquentou um pouco de feijão preto, pôs um bife na frigideira. O arroz estava secando. “Acreditem se quiser, vi uma cena deplorável, meus queridos. Deplorável...”. 4 colheres de arroz, duas de feijão, dois pedaços de bife e dois ovos cozidos. “Um acidente horrível aconteceu aqui perto da minha casa...”. Ah! Faltou um bom macarrão com cebolas. “No meio da confusão, além de uma pessoa morrer na hora, os dois motoristas começaram a se bater, violentamente...”. Pronto, é uma obra de arte da gastronomia caseira. “Acreditam que as pessoas só queriam saber de tirar fotos para postar nas redes sociais? Não há mais humanidade, senhores...”. Agora estava escovando os dentes e ao mesmo tempo acompanhava o sucesso de seu texto de 10 linhas por intermédio de seu queridíssimo smartphone.

As primeiras 15 curtidas foram de pessoas prevísseis que geralmente estavam vinculadas a ele, amigos da faculdade, vizinhos, ex-namoradas, flertes etc. Mesmo assim havia uma deliciosa sensação de aceitação. É isso, aquelas pessoas concordavam sem pestanejar de tudo aquilo que havia sido escrito por Edu. Ele revisava bem o texto antes de postar, tudo isso para manter sua moral de conhecedor das normas básicas da gramática, afinal esse era outro assunto que ele criticava bastante nas redes sociais. Depois para se reafirmar. Edu sempre ganhava os concursos de redação da escola e até foi convidado a participar de uma revista acadêmica assim que estava no segundo período de Jornalismo. Havia mais coisas em jogo entre uma postagem que logo perderia seu impacto e o seu criador. Mais do que as vãs filosofias das pessoas que alimentavam o estranho comportamento de Edu poderiam deduzir.

“Porra! Alguém compartilhou meu texto. Deixe-me ver, deixe-me ver... Ah! Foi o Vitor. Esse cara tem bom gosto. Agora é só curtir para atualizar”. Ele viu a relação de pessoas on line e resolveu puxar um papo com o Vitor, um amigo seu de longa data.

- E aí, cara? Vitor visualizou imediatamente a mensagem. “Vitor está digitando...” era mensagem que aparecia em tom cinzento para contrastar a cor preta das palavras. Vitor enviou uma carinha amarela conhecida como “smile” ou “emoticon” sorrindo e piscando, seguido de um “Faaaaaala, meu amigo!”

- Putz! Acabei de ler seu post. Que coisa doida, né?

- Pois é, rapaz...

A primeira pausa prepotente de Edu na conversa. Ele sempre utilizava poucas palavras para não demostrar propositalmente muito interesse na conversa, manter uma doentia relação de poder com quem conversava. Era o outro que tinha a necessidade de conversar com ele, não o contrário.

- Se eu tivesse no seu lugar não sei o que faria, cara. Não sei mesmo. Detesto acidentes e detesto gente medíocre. Vitor enviou um emoticon triste a fim de enfatizar a mensagem, mas do outro lado ele estava se divertindo um pouco na página “sexy all time”.

Edu visualizou, mas quis demorar uns dois minutos para responder.

- Sei como é, cara... Respondeu, Edu, mantendo reticências para aumentar um pouco a expectativa em Vitor de que ele iria escrever um complemento. Geralmente esse complemento não vinha.

Novas curtidas. Um novo compartilhamento. “É, meu garoto, seu símbolo do planeta terra está super populado de curtidas, não está?”. A Juliana Castro havia compartilhado e ainda pôs a velha legenda “só li verdades”. Devido sua beleza, é claro que seu perfil era recheado de gente que ela mal conhecia, mulheres que a invejavam, muitos homens que só queriam comê-la, e um número bem limitado de pessoas que desejavam conhece-la por acharem ela interessante não apenas por conta de sua beleza, mas também por causa de algumas de suas opiniões, aquele compartilhamento, por exemplo, era sincero e cheio de boas intenções. O sujeito que havia escrito a postagem também era cheio de boas intenções. Ótimas intenções mesmo. Pelo menos, estava cumprindo seu papel de cidadão consciente e sensível com a dor dos outros...

“Caramba! Não via tantas curtidas e compartilhamentos assim desde a postagem sobre a morte daquela menina no Oriente Médio”.

...fazendo as pessoas acordarem de sua total ignorância e arrogância em relação aos acontecimentos mais banais em seu cotidiano. “Os fins justificam os meios”. Ele pensava nessa frase porque algum intelectual meia boca o havia afirmado de que era uma frase de Nicolau Maquiavel. Bom, uma mentira repetida se torna verdade, não é? Ele estava completamente seguro de suas ideias...

Uma garota americana havia sido morta acidentalmente em uma troca de tiros entre os extremistas e os soldados americanos. Edu se aproveitou da polêmica para esquentar um pouco as coisas. Foi genial. Ele pôs uma legenda que não explicitava de que lado ele estava. Se dos americanos ou dos iraquianos. Assim, ele esbanjava doses de moralismo sem ter que tomar partido em coisa alguma. Agradava a gregos, troianos e desinformados. Serviço profissional.

...mas no fundo, Edu estava pouco se fodendo para quem havia morrido ou deixado de morrer naquele acidente ou em qualquer que fosse, estava nem aí para quem havia curtido ou deixado de curtir, compartilhado ou não sua postagem, se aproximado ou bloqueado ele nas redes sociais. Ele havia escolhido o isolamento não para estudar ou coisa do tipo. Na verdade, há meses lia absolutamente nada, nem livros best-sellers que ele mesmo criticava nas redes sociais, fazendo parecer aos demais que ele era um leitor voraz da literatura nacional do século XX. Tudo conversa fiada.

Morar sozinho pode ter sido um catalisador para sua necessidade de chamar atenção no mundo virtual. Ele queria ser alimentado todos os dias e seu ego passou a funcionar como um fogão a lenha. Era hora de externar toda a rebeldia adolescente que ele não pôde vomitar aos 15 anos por causa da presença constante da mãe.

Algumas horas antes dos acontecimentos humilhantes

Edu saiu do carro e caminhou até a porta do supermercado Shalom (particularmente, achava esse nome cafona. Como havia, pelo menos um supermercado com o mesmo nome em cada bairro que conhecia, já nem ficava tão surpreso). Ele pôs seus óculos escuros, sua mãe permaneceu no veículo, ouvindo as notícias na 106 FM, “a rádio do ouvinte informado”. Havia um aglomerado de pessoas em volta do caixa 02, lá de joelhos estava uma senhora chorando e soluçando...

- O que houve aqui pelo amor de Deus?

...haviam ferimentos graves em seu braço, provavelmente feitos por um canivete suíço bem afiado, pois a velha não chorava de dor, mas de pavor por conta do sangue que jorrava violentamente de seu corpo, banhando o chão do local que era cimentado e pintado de verde. Ela lembrava um pouco sua avó e por isso um sentimento de angústia ganhou forma em sua mente.

Será que o mundo precisava de um novo salvador? A mente dele parecia fritar diante dessa indagação.

Os gritos de dor da senhora acresciam uma agonia terrível em Edu, ele tentava ajuda-la, sua roupa já estava encharcada de sangue, já estava escura para falar a verdade. Ele pediu ajuda das pessoas, perguntou o que havia acontecido, mas ninguém movia um dedo. Algumas meninas bonitinhas e bem arrumadas tiravam fotos, e sorriam maravilhadas com aquele ato heroico. Edu olhava para elas estupefato enquanto faziam sinal de que queriam o telefone dele.

- ALGUÉM PODE ME AJUDAR, CACETE?

- Olha cara, acalme-se, quem pensa que é, o super play boy? Essa senhora resistiu a um assalto e deu no que deu. Sou o dono deste estabelecimento. Felizmente, o assaltante não levou nada dos caixas. O desgraçado saiu correndo depois da merda que fez.

Edu não acreditou no que estava ouvindo. Vou te socar até a morte, seu arrombado, é isso que eu vou fazer. O punho direito de Edu suava, os ossos de seus dedos estalavam, parecia haver uma chama queimando em sua mão, estava completamente possuído por uma raiva incomum.

- Ooooh! Ffffff... me leve para o hospital.

A senhora gemeu e arquejou de novo. Edu se controlou e carregou-a nos braços. As pessoas batiam palmas e tiravam fotos sem parar.

“Aqui no Shalom o bicho tá pegando, olhem só”, “O herói do dia. Um exemplo!”, “Essa cidade está uma bosta mesmo”, “Esse cara ajudou uma senhora que foi esfaqueada por um assaltante. Pergunto: algum de vocês faria o mesmo?”. Alguns postavam as fotos, pondo legendas do tipo. 10, 20, 30, 40... 80, 90, 100... 200 curtidas, 30 compartilhamentos e subindo rapidamente. Era fantástico! Todas as pessoas daquela cidade (que pouco importa o nome nessa história) já sabiam o que estava acontecendo. Ou quase todas, visto que algumas preferiam assistir novelas na televisão.

Edu conseguiu escapar dos sádicos paparazzi e colocar a senhora desconhecida no banco de trás do carro. Sua mãe estava muito assustada, mas ele explicou de maneira rápida e clara sobre o drástico episódio que acabara de presenciar.

- E é isso mãe. Bem-vinda a mais um capítulo de Horrorizer.

- Detesto esse livro.

Horrorizer foi um livro escrito por Edu em conjunto com um romancista amigo seu chamado Rodrigo Almeida em 2012. Haviam terminado a obra há uns dois anos, quando ambos tinham a mesma idade, ou seja, aos 22 anos. Em síntese, era a história de um adolescente com erotomania. Ele apaixona-se de maneira doentia pela nova professora de inglês, que ao contrário de sua primeira, é mais velha e mais aplicada o que desperta na mente dele uma imaginação mórbida, no começo tratada pelos pais como simples “paixonite” juvenil. Um engano fatal. Há cenas bizarras, como a do jovem se masturbando no banheiro da escola lembrando da pronúncia da professora do futuro contínuo, ou quando ele a sequestra no penúltimo capítulo para umas “aulinhas particulares”. O corpo da professora é encontrado aos pedaços em uma cesta de lixo com um papel grudado e nele as seguintes inscrições: Now, you’re going live forever, baby. A imaturidade da escrita, diziam eles, era culpa dos filmes B de terror que assistiam na época. Puxa! É sempre culpa do contexto histórico.

Hora exata do despertar

Ao chegar ao Hospital Público, Edu entrou desesperado buscando socorro. Uma enfermeira de estatura baixa e cabelos avermelhados o olhou com uma “cara de bunda” – Ei! Vocês sabem como é essa cara, não sabem? - e pediu para ele ter calma.

...acalme-se, quem pensa que é, o super play boy? Essa senhora resistiu a um assalto e deu no que deu.

- Calma o caralho! Há uma senhora em sérios apuros no meu carro, não está entendendo?

- Está bem, está bem. Dois ajudantes meus irão busca-la. Sente-se, sim, garotinho?

O médico estava chegando do almoço, em um andar preguiçoso, seus olhos pendiam de sono atrás dos grandes óculos, a testa suada e brilhante cessou seu show de iluminação ao cruzar o portão do hospital. Edu o avistou e resolveu ter com ele.

- Doutor! Doutor! Graças a Deus, doutor...

- Opa! Opa! Quem é você?

- Como assim? Estamos precisando de sua ajuda com uma paciente que está ferida.

- Ah! Sei. Olha, pode deixar, irei dar uma olhada. Você parece pálido, quer um café?

Os olhos dele gritavam de raiva...

- Não. Respondeu de forma seca e sarcástica.

- Que tom! Mais respeito, menino. O médico que atendia pelo nome de Doutor Marcos Pereira deu um leve tapa no ombro de Edu, de forma provocativa.

- Tire essas mãos de mim, seu vagabundo. Você é pago para ajudar. É o meu imposto que te alimenta, sabia?

- Seu imposto? E quem você pensa que é, seu merdinha? Você trabalha em que? Não é porra nenhuma. Acha que pode chegar em meu hospital e me mandar fazer o que quer? Aposto que tem medo até de um dedão ferido, não é? Pois vou te dizer uma última coisa. Eu já vi milhares de pessoas morrendo e não é por causa de uma velha ou de um garoto mimado igual você que irei me compadecer ou chorar... ou me desesperar. Sou um profissional e...

- Vá se foder! Edu se preparou para socar o nariz do médico quando um segurança o segurou e o imobilizou.

- Calma aí, garoto!

Olha cara, acalme-se, quem pensa que é, o super play boy?

- Ponha ele para fora daqui, já!

No caminho de volta para casa Edu e sua mãe conversavam sobre toda a merda que havia acontecido, a falta de educação que os rondara, os absurdos que presenciaram, e a falta de caráter das pessoas. Edu suava frio ao volante, claramente atordoado. Ele considerou que não houve um só momento de coerência e lucidez desde o momento em que entrou naquele supermercado de quinta categoria. De repente, todo o caos que via na televisão e nas redes sociais estava ali, bem do seu lado, visto por outros prismas. E ele pensou que os conflitos não eram tão interessantes quando experimentados na própria pele. Afinal, será que não haveria alguma estranha conexão em tudo que estava acontecendo no país? Será que o fato de um cidadão qualquer falsificar um documento para se dar bem em uma empresa, um aluno do primeiro grau colar na prova de Língua Portuguesa, uma garota optar pelo assalto em vez de uma oportunidade de trabalho, a corrupção alarmante que acontecia no país e tudo mais. Será que tudo não fazia parte de um grande e complexo sistema? Um argumento tão bem elaborado e convincente que mesmo ele que teve uma boa educação seria apenas mais uma peça no jogo. Será mesmo? Ele começou a lembrar de todas as suas atitudes até ali. Das postagens de mau gosto, de seu comportamento no coletivo, de como passara a tratar as pessoas, das humilhações pelas quais passou. Ninguém tinha culpa. Eram todos vítimas de uma moral deturpada, sedutora. Uma equação prolixa que dificultaria a vida do mais ousado e determinado herói. Pela primeira vez, algo de realmente bom brotava do coração de Edu. As trevas que encobriam sua alma, as escamas dos seus olhos e a cegueira espiritual finalmente estavam a caminho do fim.

"E pensar que houve uma época nesse país de bosta que se eu dissesse algumas boas verdades eu seria esquartejado...”

“Ei, acho que isso daria um post bem polêmico!”, “Desde quando o Brasil foi um país pacífico? Ou então, eu poderia postar exatamente o contrário só para ver o circo pegar fogo. Algo como ‘não é preciso sacar muito de História pra ver que a coisa tá preta’. Não, vou utilizar um português mais formal, de repente a Juju pode ler e querer criticar minha escrita. Aquela sem vergonha! Qualquer coisa, bloqueio logo. Vou amadurecer essa ideia primeiro”.